
Foto: Miika Laaksonen via Unplash
Em Maio de 2020 eu completei seis meses sem comer carne. É curioso pensar em como, quando algo se torna um hábito, aquilo vira relativamente mais simples de ser seguido. É parecido com tomar aquele café todos os dias de manhã: conscientemente, você pensa nas suas escolhas, até se tornar automático. Mas como nada surge de um dia para o outro, a jornada até chegar aqui demorou um tempo considerável (quase um ano). Quando você percebe que o que está no seu prato é uma decisão política, assim como as compras que você faz no supermercado, as roupas que você veste, os livros que você lê ou o político que você vota nas eleições, todas as suas decisões começam a ter um peso maior.
O pontapé inicial
Parar de consumir carne era uma ideia que até poucos anos atrás, parecia remota pra mim. Eu já sabia das minhas convicções políticas, mas foi com o aprofundamento das minhas ideias e com a influência de muitos amigos, que mostraram que não era nada fora do normal não comer um frango no almoço, que eu comecei a repensar hábitos e escolhas. Todas elas pareciam intrinsicamente ligadas com as coisas que eu acreditava: uma política e ações mais igualitárias, mais justas, anti-capitalistas. De onde surgia a carne que eu comia? Que sistema de exploração eu estava incentivando? E muito mais do que uma questão pessoal, como era a indústria da carne?
Os dados não mentem
As estatísticas e as pesquisas científicas foram os meus melhores amigos na hora de repensar o meu consumo de carne. Os relatórios, desenvolvidos a décadas, são específicos: a produção de carne emite o mesmo volume, ou mais, de Gases de Efeito Estufa que automóveis, aviões, carros, e outros meios de transporte, juntos. Uma campanha do Greenpeace no Brasil contra os impactos da pecuária na Amazônia alerta que o agronegócio é o principal vetor de desmatamento da região. A campanha “Carne ao Molho Madeira”, mostrou que todos os principais frigoríficos do Brasil tem participação ativa de atuação na maior floresta tropical do mundo.
O nosso bife do final de semana está intimamente ligado aos desastres ambientais, mas é claro que a culpa está (muito) longe de ser individual, ou apenas de quem quer curtir um churrasco no final de semana. As grandes corporações são as verdadeiras responsáveis pelo desmatamento e a criação de gado ilegal: em relatório da Anistia Internacional, a JBS, uma das maiores empresas de criação de gado, é acusada de não fazer nenhum monitoramento da origem de sua produção, comprando gados criados em fazendas de áreas protegidas e em territórios indígenas. Uma pesquisa realizada pela organização Carbon Disclosure Project (CDP), mostra que apenas 100 empresas no mundo são responsáveis por 71% das emissões dos gases de efeito estufa.
Um sistema econômico baseado na exploração; propagandas na televisão exibidas em horário nobre que anunciam a frase: “o agro é pop”; um desgoverno brasileiro que afirma querer “passar a boiada” durante uma pandemia mundial, quando a sociedade está distraída; o genocídio dos povos indígenas e originários; a visão do lucro sem fim e a qualquer custo; foi assim que a carne deixou de ser apenas carne para mim.
Como iniciar um novo hábito?
Em Novembro de 2019, eu já havia lido livros, artigos, sites e acompanhado a rotina de amigos vegetarianos e veganos. O Segunda sem Carne era algo presente nas minhas semanas; a informação já estava ali, guardada e mastigada. Agora era necessário tomar o primeiro passo, de decidir, definitivamente, não comer mais carne a partir daquele dia, quando a família toda ia jantar pizza. E vamos de pizza de brocólis.
No início, o momento de virada nunca é muito simples: comer carne é algo extremamente cultural, e está presente nos lugares que você ainda nem percebia. É também motivo de celebrações em muitas famílias, sinal de saúde financeira e de ascensão social. Esse alimento representa inúmeras coisas. E é necessário respeitar essa escolha que outras pessoas fazem. Porém, para mim, naquelas primeiras semanas, foi importante reassumir meu compromisso comigo mesma e seguir firme. Em alguns dias eu até sonhei com hambúrguer, confesso, mas quase dez meses depois, a rotina ficou mais simples, pois você embarca em uma jornada de ressignificar pratos, sabores e alimentos.
O trabalho de quem me inspirou a ser vegetariana
Nem só de força de vontade vive o ser humano. Foram meses – e é, até hoje – outras pessoas que me inspiram e fazem eu seguir minha dieta alimentar sem consumo de carnes, frangos, peixes e outros produtos de origem animal. O Modefica desempenhou um papel crucial na minha politização sobre questões ambientais; eu já havia lido muito sobre pautas importantes, mas ainda não havia feito a ligação essencial entre o problema de um sistema exploratório e um meio-ambiente degradado, com a misognia, a LGBTfobia e o racismo.
Já o Outras Mamas Podcast, criado por Babi Miranda e Thais Goldkorn, me ensinam diariamente a debater, refletir e lutar por uma narrativa antiespecista e socialista, unido a um feminismo interseccional. A influência crucial do movimento afrovegano da Luciene Santos e da Nátaly Neri seguem sendo fundamentais, pois os movimentos vegetarianos e veganos não podem sustentar bases racistas e classistas.
As fontes são inúmeras, e aprender com os mais experientes é essencial. Não há uma fórmula pronta para a consciência política ou os motivos pelo qual eu decidi parar de comer carne, pois eles estão sempre em construção; é necessário se questionar a todo tempo sobre suas decisões, e principalmente, querer saber a origem de cada uma delas.
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Thami Sgalbiero Ago 31, 2020
Gostei desse exemplo que você usou do café, porque, realmente, antes eu não tinha esse hábito de tomar café todos os dias de manhã e meu avô fazia café todos os dias. Eu só fui criar esse hábito mesmo quando comecei a trabalhar, que aí eu tomava o café e me sentia bem. E até tomava o café 2x no dia, uma vez de manhã e outra a tarde logo depois do almoço. Agora eu tomando só de manhã mesmo, porque to desempregada então não vi motivo pra tomar a tarde, haha! Mas enfim, sobre a carne, acho que o máximo que fiquei foi 1 mês. Porque minha irmã estava tentando também, daí eu comia tudo o que ela comia. Ela só não pôde continuar, porque teve uns problemas de saúde e agora voltou a comer. Pro caso dela, é bom antes ter um acompanhamento de uma nutricionista pra não ter complicações, sabe? O ruim é que não achamos ainda uma nutricionista focada nessa alimentação que o plano dela cubra. Você mencionou ali a pizza de brocólis e eu só consigo lembrar da pizzaria que tem no iFood que tem uma pizza de brocólis premium que… nossa, só pela foto já me dá fome. É a mesma pizzaria que eu peço a pizza de banana nevada que também é uma delícia, então já sei que a de brocólis também vai ser, haha! Enfim, é um novo hábito que ajuda de várias formas né? Nós mesmas e o mundo. Então, é uma decisão boa e eu admiro muito quem consegue mudar e continuar.
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Fernanda Rodrigues Set 01, 2020
Oi, Ana! 🙂
Eu ainda não consegui parar, mas eu estou diminuindo muito o consumo de carne. Seu post me inspira a continuar nesse caminho de redução. Espero conseguir chegar no Zero carne.
Obrigada por compartilhar a sua experiência!
Um beijo :*
Fê -
Ane Carol Set 18, 2020
Parabéns pelos seus primeiros 6 meses. Já fiquei uns 60 dias sem consumir nada de origem animal. Esse período para mim foi importante para descobrir um novo universo de possibilidades, principalmente relacionado a culinária vegana. Hoje em dia meu consumo de carne reduziu bem, assim como de outros produtos de origem animal, mas não exclui do meu cardápio. Porém, comecei a analisar meu consumo relacionado a roupas, produtos, livros e etc. Tudo é um processo e aos poucos vamos caminhado para nossa melhor versão.